Na terça-feira de manhã, Jair Bolsonaro deu posse a seu novo ministro da Saúde num ritual semelhante ao dos enterros dos 300 mil brasileiros mortos pela Covid: sem público, sem cumprimentos, sem fotos nem vestígios para a posteridade. A posse envergonhada se deu às pressas porque, quase dez dias depois de anunciado, Marcelo Queiroga, deixado ao relento, havia virado uma espécie de carregador de pasta do antecessor, Eduardo Pazuello. O Centrão farejou sangue e já estava articulando sua derrubada antes mesmo da posse quando Bolsonaro finalmente o nomeou.
O episódio, e sobretudo o contexto da decisão de mudar o ministro da Saúde, vai além da já demonstrada desídia do governo na condução das ações contra a pandemia. É um dos atos da farsa que o presidente resolveu montar desde que percebeu que sua popularidade está sangrando por causa da tragédia do coronavírus. Não, o problema, para ele, não é o macabro recorde de mortes. É a perda de pontos nas pesquisas, justamente agora que o ex-presidente Lula volta ao cenário para 2022. Bolsonaro agora está desesperado para estancar essa curva.
Com esse propósito, convocou cadeia de rádio e TV no mesmo dia da posse do ministro, à noite, para dizer que sempre foi a favor e trabalhou pela vacinação em massa no país. Acredite quem sofrer de amnésia. Alguns jornais usaram eufemismos, como “omitiu”, ou “distorceu” para se referir às palavras do presidente sobre seu amor pelas vacinas. Mas, num dado momento, generalizou-se na mídia e nas redes o uso do verbo correto: mentiu. A grande maioria da população, e não só o pessoal que bateu as panelas, não sofre de problemas de memória.
Na manhã seguinte, o roteiro prosseguiu: Bolsonaro reuniu-se com os chefes dos poderes da República no Alvorada, numa encenação de pacto contra a Covid. As entrevistas posteriores não renderam uma só satisfação sobre as medidas mais urgente num país onde estão morrendo mais de 3 mil pessoas por dia: isolamento e lockdown. Não se falou nisso. Anunciaram que o resultado importantíssimo do encontro foi o fato de todo mundo ter concordado com a necessidade de fazer esforços para vacinar toda a população. Ahã…. conta outra. Quem vai ser contra isso?
De prático, não saiu do Alvorada nada além da foto de autoridades constrangidas, provavelmente dando graças a Deus por estarem de máscara naquele momento. Aliás, nem a foto. Quem não estava nela, já que o Planalto só convidou governadores amigos, tratou de melar qualquer possibilidade de avanço a partir daquilo ali. Foi o caso de João Doria, por exemplo, que governa o maior estado do país e foi excluído da conversa.
A cereja do bolo intragável da empulhação veio no início da tarde desta quarta, quando os estados e municípios acusaram o Ministério da Saúde de ter mudado os critérios de inscrição dos nomes dos mortos da Covid nas estatísticas oficiais atualizadas diariamente. O documento passou a ter que ser preenchido com dados não exigidos antes, como número do cartão do SUS, CPF e informação sobre vacinação. Já nas primeiras horas, o número de óbitos caiu – não porque tenha morrido menos gente, mas porque ficou mais difícil cadastrá-las. Aliás, muito pelo contrário, quase ao mesmo tempo em que se discutia a mudança nos critérios de mortes, os números do consórcio da mídia apontavam que o país alcançava os 300 mil mortos.
No fim da tarde, entre acusações – ao que parece fundadas — de que o governo quer esconder o aumento nos óbitos, e rumores de que iria voltar atrás, o ministro Marcelo Queiroga disse, em sua primeira entrevista, que é médico, “e não maquiador”. Sabemos disso, Dr. Queiroga. Mas o senhor agora subiu no palco onde está sendo encenada a tragédia. Maquiado ou não, se não cumprir direitinho o roteiro de Bolsonaro, está fora.
Helena Chagas é jornalista